“Parece que é na tentativa de rearticular a relação entre sujeitos e práticas discursivas que a questão da identidade – ou melhor; a questão da identificação, caso se prefira enfatizar o processo de subjetivação (em vez das práticas discursivas) e a política de exclusão que essa subjetividade parece implicar – volta a aparecer.” (Hall, 2000:105)
Antes de aprofundar-nos nas categorias de identificação que se apresentam nesse embate atual, creio de suma importância resgatar os conceitos essenciais formulados por Stuart Hall. Primeiramente, Hall alerta-nos sobre o caráter “estratégico e posicional” de seu conceito de identidade, e ressalta seu papel na delimitação da diferença e da exclusão, mais do que um signo de unidade e similitude. Nas próprias explicações do autor:
Utilizo o termo ’identidade’ para significar o ponto de encontro, o ponto de sutura, entre, por um lado, os discursos e as práticas que tentam nos ‘interpelar’, nos falar ou nos convocar para que assumamos nossos lugares como os sujeitos sociais de discursos particulares e, por outro lado, os processos que produzem subjetividades, que nos constroem como sujeitos aos quais se pode ‘falar’. (Hall, 2000:111-112)
Dentro desta noção, aparece o coletivo da acupuntura multiprofissional, formado a partir da criação da Postaria 971 e da inserção destes profissionais da área de saúde no SUS. Profissionais de áreas tão díspares, como farmácia e educação-física, passam a exibir sua identidade de acupunturista multiprofissional e passam a lutar juntos contra a regulamentação da acupuntura autônoma e independente, em audiências públicas e seminários promovidos pelos relatores dos Projetos de Lei, tanto no Senado como na Câmara dos Deputados (a serem analisados no Capítulo 5). Este coletivo, em associação com o próprio Ministério da Saúde, passa a defender a irrelevância destes projetos, argumentando que os “especialistas” seriam suficientes para exercer as funções de acupunturista e passam assim a negar toda a complexidade e autonomia deste saber milenar em prol de uma postura acomodada, por parte do Ministério, e interesseira e corporativista, pelo lado dos profissionais da saúde. Minha posição, aparentemente taxativa e parcial nesta discussão, vem na direção de tudo o que foi discutido anteriormente nessa dissertação e vem consolidar uma postura de terceiro incluído, e conhecedor destas realidades conflitivas, portanto assumindo a posição de sujeito inseparável do objeto, numa análise antropológica e transdisciplinar. Complementando o anterior, cito a opinião de Morin sobre as especialidades, convergindo na direção da necessidade de valorização da ciência médica chinesa em toda a sua complexidade:
A inteligência parcelar, compartimentada, mecânica, disjuntiva, reducionista, quebra o complexo do mundo, produz fragmentos, fraciona os problemas, separa o que é ligado, unidimensionaliza o multidimensional. (Morin, 2000)
Além do mais, creio oportuno resgatar os mais consistentes preceitos da ciência antropológica e exaltar as palavras de Arias-Schreiber, para expor a necessidade de uma aceitação radical do outro:
El reconocimiento es más que la tolerancia positiva. Reconocer al otro en su alteridad radical es más que respetar sus diferencias y comprenderlo desde su percepción del mundo. Reconocer al otro es respetar su autonomía, es percibirlo como valioso. Pero la valoración a priori del otro es un falso reconocimiento. La gente merece y desea respeto, no condescendencia. El verdadero reconocimiento es a posteriori, se da en la experiencia del encuentro con el otro. Pero solo es posible en relaciones auténticamente simétricas y libres de coación (grifo meu). El verdadero reconocimiento presupone una actitud reflexiva en relación a nosotros mismos, una objetivación de nuestra manera de entender y valorar el mundo. (...) Nos permite liberarnos del etnocentrismo acrítico que impide la apertura al otro y la valoración de las diferencias. La valoración a posteriori de lo diferente es el reconocimiento auténtico. (Arias-Schreiber, 2005:189-190)
O entendimento destes argumentos passa a ser vital para o fomento de um debate verdadeiro entre as partes, ainda mais em um momento no qual este encontro acontece em um terreno tão privilegiado como o próprio Congresso Nacional, a casa do processo democrático. Parece ser uma oportunidade para que todas as partes sejam levadas a sério e que os reconhecimentos surjam do encontro pleno entre essas realidades.
Em outra abordagem possível, recupero as noções de identidade trabalhadas por Castells, para aplicá-las já adequadas a este projeto e, assim, expor a realidade da acupuntura no Brasil, onde se evidenciam, dentro de suas peculiaridades, as identidades legitimadoras, de resistência e de projeto (Castells).
Identidades legitimadoras, Identidades de resistência e Identidades de projeto
Para começar, resgato os conceitos de Castells sobre os três grandes tipos de Identidade, construídos a partir de seus estudos sobre os movimentos sociais nas últimas décadas. Nesse presente trabalho, faço adequações de suas denominações por acreditar que possam ser aplicadas para a realidade dos conflitos de identidade entre os coletivos da acupuntura no Brasil atual. Segundo o autor, essas seriam as três identidades:
[...] Identidade legitimadora: introduzida pelas instituições da sociedade no intuito de expandir e racionalizar sua dominação em relação aos atores sociais “;
Identidade de resistência: criado por atores que se encontram em posições/condições desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lógica da dominação.
Identidade de projeto: quando os atores, utilizando- se de qualquer tipo de material cultural ao seu alcance, constroem uma nova identidade capaz de redefinir sua posição na sociedade [...] (Castells,1999: 24 )
Atualmente convivem, de uma maneira não muito harmônica, três grandes grupos com a Identidade Acupunturista. De um lado temos o coletivo de médicos-acupunturistas, especialistas recentemente chamados de acupunturólogos. De outro lado, estão os especialistas vinculados às profissões da área de saúde que reconhecem a acupuntura como especialidade, conhecidos pela bandeira da acupuntura multiprofissional. E considerados à margem dos processos legais, está um heterogêneo grupo sob a denominação de acupunturistas tradicionais. A intenção deste capítulo é precisamente tornar inteligíveis estes agrupamentos, com suas subdivisões, e, concomitantemente, explicitar este conflito de identidades.
Os médicos-acupunturistas são, aparentemente, o coletivo mais forte em atividade no Brasil atual. Nos capítulos anteriores discutimos o longo processo de assimilação da técnica pelo coletivo e a transição de uma postura cética e desconfiada para outra de comprovação científica certa. Deste modo, este coletivo assume o papel de umaidentidade legitimadora, nos termos de Castells, e passa a desempenhar a função de ampliar e racionalizar sua dominação, sob o aval da ciência dominante. Esta característica foi amplamente discutida no Capítulo 3, quando foi apresentada a postura médica frente a técnica e sua apropriação isenta do saber que lhe deu origem, perpetuando, deste modo, o modus operandi da medicina oficial.
O coletivo dos acupunturistas-especialistas das profissões “subalternas” da área da saúde, representando a acupuntura multiprofissional, passa a assimilar o papel deidentidades de projeto, redefinindo seu próprio papel na sociedade, nos termos de Castells, e, em sintonia com as diretrizes do SUS, desvencilhando-se da condição subalterna (com a ajuda da própria acupuntura) frente aos médicos, como no caso dos fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais, ou farmacêuticos, os quais sempre se encontraram em uma posição inferior na hierarquia das profissões da saúde, à mercê dos ditames médicos. Esse coletivo, apesar de bastante heterogêneo, por contar com profissionais de formações totalmente diferentes, dentro dos estudos ocidentais, passa a compartilhar uma identidade comum: acupunturista multiprofissional.
E ainda um terceiro grupo, também bastante heterogêneo, formado por profissionais técnicos, com diplomas reconhecidos pelas secretarias de saúde estaduais e com diplomas publicados em diário oficial (e, portanto, reconhecidos pelo Estado) somado a outros profissionais sem o devido reconhecimento do Estado, com formação em cursos livres ou por faculdades no exterior, intitulado acupunturistas tradicionais. Estes últimos encarnam a identidade de resistência neste processo, e clamam pelo reconhecimento simplesmente, livres de coação, em sintonia com os projetos de lei que tramitam no congresso nacional e visam a regulamentação da profissão e da formaçãoem Nível Superior de forma independente. Estes profissionais se encontram na posição de identidades de resistência e, segundo Castells, “constroem trincheiras de resistência e sobrevivência baseadas em princípios diferentes ou opostos aos que impregnam as instituições da sociedade” (Castells, 1999: p 24)
Trecho da dissertação para finalização do Bacharelado em Ciências Sociais com habilitação em Antropologia, UnB.