quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Homeopatia não é uma prática exclusiva dos médicos diz o Procurador da República em Minas Gerais

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA DA REPÚBLICA EM MINAS GERAIS

PAC Nº.: 1.22.000.00422212002-59

REPRESENTANTE: CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA - CFM
REPRESENTADA: UNIVERSIDADE FEDERAL DE VIÇOSA E OUTROS

DECISÃO
CAPÍTULO XXV
A justiça decide: Cursos de homeopatia da UFV
são legais. A ciência da homeopatia não é exclusiva dos médicos

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA DA REPÚBLICA EM MINAS GERAIS

PAC Nº.: 1.22.000.00422212002-59

REPRESENTANTE: CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA - CFM
REPRESENTADA: UNIVERSIDADE FEDERAL DE VIÇOSA E OUTROS

DECISÃO
A DENÚNCIA DO CFM E AMHB CONTRA A UNIVERSIDADE FEDERAL DE VIÇOSA E CONTRA A ATENEMG
Trata-se de Procedimento Administrativo Cível instaurado contra a Universidade Federal de Viçosa (UFV) e a Associação de Terapeutas Energéticos e Naturistas do Estado de Minas Gerais (ATENEMG) em função de representação proveniente do CFM - Conselho Federal de Medicina (fls. 02/09).

Noticiou-se que as Representadas estariam atuando em sentido contrário ao regular exercício da medicina em virtude da divulgação, promoção e patrocínio de cursos de Homeopatia destinados ao público em geral.
Assim, conforme se depreende das informações fornecidas pela Associação Médica Homeopática Brasileira (AMHB), a Pró-Reitoria de Extensão e Cultura da Universidade Federal de Viçosa - UFV, em parceria com a ATENEMG, estaria divulgando Cursos de Extensão de Homeopatia. Todavia, segundo a AMHB, esses cursos de extensão apresentam inúmeras irregularidades, dentre as quais:

- o curso no seu modelo atual se adequa melhor a um curso seqüencial de acordo com o próprio Regulamento da UFV;

- a exorbitante carga horária (chega a ser 600 horas) proposta para um curso que se propõe a transmitir generalidades do conhecimento, extrapolando inclusive a carga horária de cursos de extensão para agentes formadores;

- inadequação do conteúdo proposto pela Universidade Federal de Viçosa, que contribui notadamente para formação de profissionais da agropecuária, e o público-alvo às justificativas que fundamentam a inserção da disciplina de Homeopatia no contexto da universidade - isto é, o enfoque ao invés de ser o produtor rural e/ou a produção de alimentos, é a primazia da abordagem clínica e a divulgação urbana;

- conteúdo programático que excede ao objetivo proposto de caráter informativo, carente de qualquer assunto que vincule a Homeopatia como terapêutica agronômica; e,

- predomínio de assuntos concernentes à saúde humana enfocando a observação clínica e a abordagem médica e terapêutica.

A VISÃO DO CFM SOBRE A HOMEOPATIA
De acordo com o entendimento do CFM, tais irregularidades são decorrentes do fato de que “a homeopatia é um ato médico e uma especialidade médica, somente podendo ser praticada por profissional médico devidamente habilitado, em termos legais e curriculares”. Assim sendo, apenas médicos regularmente inscritos nos Conselhos regionais de medicina poderiam lecionar e aplicar as técnicas da Homeopatia.
BASE LEGAL DA VISÃO DO CFM E PROPOSTA PARA SUSPENSÃO DO CURSO DE EXTENSAO DE
HOMEOPATIA da UFV
Esse entendimento decorre do disposto na Resolução nº. 1.627/2001, que define o ato médico como todo o procedimento que vise: 1) a promoção da saúde e a prevenção da ocorrência de enfermidades ou profilaxia (prevenção primária); 2) a prevenção da evolução de enfermidades ou execução de procedimentos diagnósticos ou terapêuticos (prevenção secundária); e, 3) a prevenção da invalidez ou reabilitação dos enfermos (prevenção terciária).

Nesse mesmo sentido, a Resolução n°. 1.634/2002 do CFM definiu expressamente a Homeopatia como uma especialidade médica e, portanto, somente por médico regularmente inscrito nos conselhos de medicina pode ser legalmente praticada.

Por fim, conclui o CFM que “diante de tudo o que foi acima exposto e da conclusão inequívoca de que a homeopatia é uma especialidade médica e, por conseguinte um ato médico, solicitamos a essa Douta Procuradoria do Ministério Público Federal que tome as previdências competentes quanto às irregularidades apontadas no sentido de suspender os cursos ministrados pela Universidade Federal de Viçosa”.
PROCESSO SEMELHANTE APRESENTADO PELO CFM
Tendo em vista a decisão exarada no PAC n°. 1.22.000.000615/2002-93, que conclui pela atuação do Ministério Público Federal apenas na esfera cível, e sendo absoluta a identidade da matéria versada nestes autos como o objeto do PAC n°. 1.22.000.000615/2002-93, determinou-se o arquivamento deste PAC, centralizando-se as investigações no presente PAC de nº. 1.22.000.004222/2002-59, juntando cópia integral do PAC arquivado e fazendo constar como requerente, ao lado do Conselho Federal de Medicina, a Associação Médica Homeopática Brasileira - AMHB.

A VISÃO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE VIÇOSA
SOBRE A HOMEOPATIA
Destarte, através do ofício n.° 372/2003 PRM SOTC FAM, requisitou-se à Universidade Federal de Viçosa que se manifestasse acerca dos fatos relatados pelos representantes. Em 24 de outubro de 2003, a UFV remete sua resposta ao MPF afirmando que “a conclusão de que a homeopatia se reduz a ‘especialidade médica’ está equivocada, por conseguinte não é apenas ato médico. Os equívocos trouxeram à tona no CFM a hipótese de irregularidade do ‘Curso de Extensão’ promovido pela UFV”.
ATOS DO CFM SÓ VALEM PARA OS MÉDICOS
Consoante entendimento da UFV, os atos regulamentares do CFM sobre a prática da homeopatia (terapêutica humana) aplicam-se somente aos médicos, não sendo válida aos demais profissionais (veterinário, agrônomo etc.) e à população em geral.
A HISTÓRIA DA HOMEOPATIA E O POVO BRASILEIRO
Continua a Universidade ponderando que não compete ao CFM revogar as atividades da cultura, nem as tradições da homeopatia preservadas desde 1840 no Brasil e muito menos os conhecimentos da etnociência brasileira, pois a homeopatia quando chegou ao Brasil foi aceita e praticada pelo povo e não pelos médicos que a perseguiram até 1980.
A CIÊNCIA DA HOMEOPATIA ABRANGE VÁRIAS ÁREAS DO CAMPO DO CONHECIMENTO HUMANO
Defende que a Homeopatia é também o campo de ação de inúmeras áreas do conhecimento humano, dentre as quais a veterinária, odontologia, farmácia, agronomia, zootecnia, biologia, psicologia etc. Assim, “as pessoas podem praticar homeopatia como sempre fizeram, desde que não seja como profissionais médicos”, pois “receitar na condição de médico não é permitido, recomendar na condição de terapeuta não é proibido”.
PROVAS DE QUE A HOMEOPATIA ABRANGE PROFISSÕES COMO A AGRONOMIA
A fim de comprovar o alegado, juntou-se cópia de estudo publicado pelo Prof. Marcus Zulian Teixeira que trata da utilização da homeopatia na agricultura (fls. 84/85 do presente PAC).
Nesse diapasão, afirma a UFV que “o produtor rural brasileiro escolhe, prepara e aplica homeopatias visando gerar o alimento sem agrotóxico beneficiando a saúde da humanidade”, sendo tal prática reconhecida e recomendada pela Instrução Normativa n.° 7 do Ministério da Agricultura, publicada no Diário Oficial da União em 19/05/1999, implicando, com isso, que a homeopatia é livre e não se limita aos médicos como vulgarmente se crê.
O CURSO DE EXTENSÃO DE HOMEOPATIA DA UFV TEM APORTE LEGAL NO ART. 43 DA LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO
Relativamente ao Curso de Extensão em Homeopatia oferecido pela instituição de ensino, sustenta a UFV que tal curso tem base legal no art. 43 da Lei Federal n.° 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação), pois não confere título de especialização por ser evento de extensão universitária, sendo “aberto à participação da população” conforme determina a lei mencionada.

Comprova a alegação supra através de cópia da ficha de inscrição (fls. 158 do presente PAC) em que fica expressamente consignado que o objetivo do curso de extensão universitária em Homeopatia é “divulgar o conhecimento sobre a ciência da homeopatia, não habilitando o exercício profissional”.

Afirma que a Homeopatia no curso de extensão da UFV é ensinada por não-médicos, por ser não-médica. É ensinada como ciência, pela generalidade do saber, visto ser aplicável a todos os sistemas vivos.

Por fim, sustenta que a homeopatia ministrada na UFV possui o maior programa de ensino, pesquisa e extensão universitária do Brasil, pois são visualizados o ser humano, os alimentos, o meio ambiente e a sustentabilidade.
UFV PREPARA PÓS-GRADUANDO EM HOMEOPATIA NA ÁREA AGRÍCOLA
Em virtude disso, “a pesquisa sobre Homeopatia na UFV já gerou 8 teses de pós-graduação abordando a ciência da Homeopatia havendo mais 5 teses em andamento. A Fundação Banco do Brasil, com base em comissão internacional, já certificou a homeopatia da UFV como ‘Tecnologia Social’. A Embrapa premiou o trabalho da UFV em favor do meio ambiente com homeopatia. O CNPq financiou várias pesquisas da UFV sobre ciência homeopática. A FINEP aprovou o evento de extensão ‘Seminário Brasileiro sobre Homeopatia na Agropecuária Orgânica’, promovido pela UFV. Instituições diversas fazem parceria com a UFV nos eventos de extensão envolvendo homeopatia”.
O ESTUDO DO TEMA PELO PROCURADOR GERAL DA REPÚBLICA
É o relatório. Passo a decidir.
Da análise do PAC em epígrafe, nota-se que duas questões fundamentais devem ser enfrentadas, quais sejam:
DUAS QUESTÕES FUNDAMENTAIS AO ANALISAR O PAC
a) se a prática e o ensino da homeopatia se restringem aos profissionais médicos; e,
b) em caso de ser negativa a assertiva anterior, se o curso de extensão em Homeopatia ofertado pela Universidade Federal de Viçosa (UFV) apresenta irregularidades concernentes ao seu conteúdo. Assim sendo, passa-se à análise das questões suscitadas.
O ESTUDO SOBRE A QUESTÃO CONSTITUCIONAL A RESPEITO DA LIBERDADE DO EXERCÍCIO DAS PROFISSÕES
Em relação à questão de ser a prática e o ensino da homeopatia ofícios exclusivos de profissionais médicos, tal assertiva deve ser analisada à luz da disciplina constitucional do exercício da profissão.

A liberdade de profissão está consagrada em todas as Constituições brasileiras. Razão há para tanto, visto ser ela não só um direito fundamental em toda parte reconhecido, como também constituir uma das peças fundamentais da própria organização econômica.

Não foge à regra a Constituição em vigor, de 5 de outubro de 1988.
No art. 5.°, inciso XIII é esse direito explicitado, nos seguintes termos:

“É livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”.

Um exame perfunctório deste preceito mostra que tal liberdade não é absoluta. Ela há de ser exercida no contexto da lei, e somente por quem tiver as qualificações necessárias para tanto.

Na verdade, no direito contemporâneo, sempre se entende que cada direito fundamental encontra limites na necessária coordenação para que todos dele gozem, para a salvaguarda do interesse geral. Nesse sentido Habermas, citando Kant, diz que “de si mesmo, o direito está ligado à autorização para o uso da coerção; no entanto esse uso só se justifica quando elimina empecilhos à liberdade, portanto, quando se opõe a abusos na liberdade de cada um. Essa relação interna entre o poder geral e recíproco de usar a força e a liberdade de cada um se manifesta na pretensão de validade do direito”1.

Quando a Carta Magna admite seja vedado o exercício profissional no caso do indivíduo não atender as qualificações profissionais exigidas em lei, está ela indicando que a finalidade das exigências de qualificação visa a garantir a saúde (e a vida), bem como a segurança de todos e de cada um, que estariam gravemente ameaçadas se pessoas não preparadas, não habilitadas, não qualificadas, pudessem exercer profissões delicadas, que concernem à saúde, vida e segurança individuais.

Não é de hoje que se enfatiza a necessidade de qualificação adequada para o exercício de algumas profissões. Analisando a Constituição de 1967, com a Emenda n.º de 1969, o eminente jurista Pontes de Miranda assinala que “a liberdade de profissão não pode ir até ao ponto de se permitir que exerçam algumas profissões pessoas inabilitadas, nem até ao ponto de se abster o Estado de firmar métodos de seleção” 2.

Continua o citado mestre discorrendo sobre “pressupostos de capacidade”, onde afirma que “sempre que a profissão liberal, para que o público seja bem servido e o interesse coletivo satisfeito, requeira habilitação, não constitui violação à legislação que estabeleça o mínimo de conhecimentos necessários” 3.

Portanto, a lei pode estabelecer pressupostos necessários para o exercício das profissões que demandem um conjunto de conhecimentos necessários e suficientes para que alguém seja julgado apto à prática de alguma profissão pública ou privada sem causar prejuízos à vida, saúde e segurança de terceiros.

Assim sendo, consoante se extrai da dicção do inciso XIII do art. 5.º da Magna Carta, é constitucional a lei que estabeleça limitações ao exercício de determinadas profissões, desde que atendidos requisitos materiais e formais.

1 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade, volume 1. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. pág. 49.

2 MIRANDA, Pontes. Comentários à Constituição de 1967, com a Emenda n.º 1, de 1969 - Volume V. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2ª edição, 1971. pág. 542.

3 Id., ibid., pág. 536/537.

Relativamente ao requisito material, a limitação ao exercício de determinadas profissões só se configura constitucional se for determinada por imperativos de qualificações profissionais que evitem ou diminuam o risco de que a prática dessas profissões ocasionem sérios danos sociais. Assim, para que uma determinada atividade exija qualificações profissionais para o seu desempenho, é necessário que tal atividade implique conhecimentos técnicos e científicos avançados, sem os quais graves danos sociais poderiam ser ocasionados.

Conforme leciona Celso Ribeiro Bastos, “é lógico que toda profissão implica algum grau de conhecimento. Mas muitas delas, muito provavelmente a maioria, contentam-se com um aprendizado mediante algo parecido com um estágio profissional. A iniciação destas profissões pode-se dar pela assunção de atividades junto às pessoas que as exercem, as quais, de maneira informal, vão transmitindo os novos conhecimentos.

Outras contudo demandam conhecimento anterior de caráter formal em instituições reconhecidas. As dimensões extremamente agigantadas dos conhecimentos aprofundados para o exercício de certos misteres, assim como o embasamento teórico que eles pressupõem, obrigam na verdade a este aprendizado formal” 4.

4 BASTOS, Celso Ribeiro. Comentários à Constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. São Paulo: Editora Saraiva, 1998, pág. 78.
A LIMITAÇÃO AO EXERCÍCIO DE DETERMINADAS PROFISSÕES SÓ SE CONFIGURA CONSTITUCIONAL QUANDO FOR DETERMINADA POR LEI FEDERAL
Em relação ao requisito formal, a limitação ao exercício de determinadas profissões só se configura constitucional se for determinada por lei federal, cuidando-se de matéria de estrita reserva legal, ou seja, sem qualquer possibilidade de outros atos normativos do Legislativo ou Executivo virem a lhe fazer às vezes, pois ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (art. 5.°, inciso) II da Constituição da República de 1988).

In casu, visando zelar pela saúde humana, portanto, pela própria vida, o exercício da medicina é obviamente um dos que mais evidentemente exigem qualificação especial para o seu exercício, sendo inteiramente constitucional lei ordinária que restrinja o exercício da medicina pela observância de algumas qualificações profissionais.

O QUE ESTABELECE A LEI FEDERAL 3.268
QUE CRIOU O CFM
No Brasil, a Lei Federal n.° 3.268, de 30 de setembro de 1957, institui um sistema, encabeçado pelo Conselho Federal de Medicina, respaldado por Conselhos Regionais, com a incumbência de controlar esse exercício.

Dentre as atribuições dos Conselhos Regionais salienta-se está a de verificar a habilitação de quem pretende exercer essa profissão. Para tanto, o art. 17 da mencionada lei condiciona o exercício da medicina a uma inscrição em Conselho Regional de Medicina competente. Comprova isto a importância que tem, para a comunidade, restringir o exercício da medicina apenas aos habilitados por seus conhecimentos a fazê-lo.

QUAL É O CAMPO ATUAL QUE É EXCLUSIVO DO MÉDICO E ONDE COMEÇA O CAMPO QUE ABRANGE A ÁREA DE OUTROS PROFISSIONAIS DA SAÚDE?
RESOLUÇÕES DO CFM PODEM CONTROLAR A AÇÃO DE NÃO MÉDICOS?
Todavia, a Lei n.° 3.268/57 não delimitou o campo da profissão de médico; não estabeleceu a área de atuação exclusiva do profissional médico, onde seria vedado a qualquer outro profissional atuar de forma lícita.

Ora, sendo a definição do campo da profissão do médico matéria afeta exclusivamente a regulamentação legal, imprestável é a definição do que vem a ser ato médico (Resolução n.° 1.627/01 do CFM) e das especialidades médicas (Resolução n.° 1.634/02 do CFM) por atos normativos do próprio Conselho Federal de Medicina, pois tais resoluções, não tendo força de lei, não podem obrigar às pessoas a deixarem de fazer alguma coisa.

Diante de tal situação, seria lícito afirmar que, na ausência de determinação legal exigida pelo texto constitucional, não há uma área de atuação exclusiva para o médico, pois o indivíduo só é obrigado a abster-se de determinado comportamento em virtude de lei (art. 5º, inciso II da CR/88)? Em sendo verdadeira a assertiva anterior, qualquer pessoa, independente de sua qualificação profissional, poderia realizar, por exemplo, uma cirurgia neurológica?

Se são inconstitucionais as resoluções do Conselho Federal de Medicina que se destinam a delimitar as áreas de atuação exclusivas dos médicos, seria, de fato, “mais inconstitucional ainda” que, exigida a qualificação médica para proteger o indivíduo na sua vida e saúde, fosse permitido a qualquer pessoa independente de sua qualificação profissional realizar uma cirurgia neurológica em virtude da omissão do Poder Legislativo em editar uma lei que defina qual a área de atuação exclusiva dos médicos.
TEORIA: QUANDO AGE A JUSTIÇA NUMA CELEUMA JURÍDICA PARA CONSTRUIR UMA NORMA JURÍDICA QUE COMPLEMENTA O ESPÍRITO DA CONSTITUIÇÃO, DA LEI E DO FATO SOCIAL
Perante tal celeuma jurídica, a única alternativa possível para a concretização do disposto no inciso XIII, do art. 5.º, da Constituição da República de 1988 é adotar uma postura interpretativa concretista condizente com o paradigma do Estado Democrático de Direito (art. 1.º da CR/88), em que o texto da Constituição não encerre toda a normatividade dos fatos sociais, mas que a norma jurídica que regule os fatos sociais seja construída caso a caso através da inter-relação entre Texto Constitucional, conhecimento histórico, filosófico e científico dos diversos subsistemas de saber que compõem o saber humano e a realidade social circundante.

Nas palavras do insuperável constitucionalista Paulo Bonavides, “com a constitucionalidade material o que se busca, num determinado sentido, é conciliar a realidade com a Constituição, o ser com o dever-ser, a regra com o princípio, o direito do cidadão com a autoridade do Estado. De tal maneira que se venham a captar na ordem fática elementos de juridicidade com que erguer a base normativa de concretização dos preceitos ou comandos a partir da letra do texto constitucional, combinado a seguir com os aludidos elementos de facticidade.

Toda a linha interpretativa mediante a qual se rege a teoria material da Constituição se coloca, por conseguinte, em pólo oposto ao da Hermenêutica clássica pelo menos numa fase onde a relevância do texto normativo não concentra nem monopoliza os subsídios ou elementos de compreensão que perfazem a trajetória concretizante de aplicação da norma” 5.

5 BONAVIDES, Paulo. Reflexões: Política e Direito. São Paulo: Editora Malheiros, 3ª edição, 1998. pág. 27.

Destarte, consoante ensinamento do constitucionalista alemão Friedrich Müller, “a norma jurídica que disciplina um fato social é mais que o seu teor literal. O teor literal expressa, juntamente com todos os recursos interpretativos auxiliares, o ‘programa da norma’. A área da norma pertence à norma com grau hierárquico igual. Ela é a estrutura básica do segmento da realidade social, que o programa da norma ‘escolheu para si’ como a ‘sua’ área de regulamentação (...)” 6.

6 MULLER, Friedrich. Direito, Linguagem, Violência - Elementos de uma teoria constitucional. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1995. pág. 42/43.
TEORIA DO DIREITO E APLICAÇÃO DA SUA PRÁTICA
No caso em epígrafe, deve-se, portanto, descobrir qual é a área da norma do preceito constitucional que limita a liberdade do exercício profissional à necessidade de qualificação profissional, ou seja, deve-se descobrir se a prática e ensino da Homeopatia estão abrangidas pela área de atuação exclusiva dos profissionais médicos. Tal descoberta só será possível através da captação na realidade social de elementos de juridicidade que determinem o sentido do texto constitucional.

Assim sendo, a norma jurídica possui uma estrutura ambígua, pois, de um lado, aguarda-se que o endereçado da norma interprete o conteúdo da mesma, e, de outro, que se submeta a tal norma, dando seu aval difuso. Nas palavras do inigualável jurista Tércio Sampaio de Ferraz Júnior, “está aí o comportamento ambíguo que nos leva à ambigüidade estrutural do discurso normativo. O endereçado é, ao mesmo tempo, convidado a participar, co-determinando o sentido do relato (conteúdo da norma), e convidado apenas a submeter-se” 7.

7 FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Teoria da Norma Jurídica. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2003. pág. 45.
Esta ambigüidade de comportamento do jurista que interpreta o texto normativo faz do discurso normativo uma ação lingüística sui generis, que, estruturalmente, é, ao mesmo tempo, dialógica e monológica. É dialógica quando o conteúdo normativo (sentido da norma jurídica) é relevante e os juristas aparecem como parte argumentante e intérprete. É monológica quando o conteúdo normativo é secundário e os comunicadores aparecem como autoridade e sujeito.

Neste diapasão, conclui o mencionado jurista que “se o discurso normativo é, pois, dialógico e monológico, disto decorre que o objeto do discurso, conforme o modelo pragmático, a questão (quaestio), é também, ao mesmo tempo, um certum e um dubium. É um certum, tendo em vista a relação autoridade/sujeito, de estrutura monológica, cuja regra básica diz que nem todas as ações lingüísticas do orador podem ser postas em dúvida pelo ouvinte (intérprete) (...). É um dubium, tendo em vista a relação parte argumentante/intérprete, de estrutura dialógica, cuja regra básica diz que todas as ações lingüísticas do orador (norma) podem ser postas em dúvida pelo ouvinte (intérprete), donde a necessidade de diálogos parciais para obtenção de enunciados primários, de força persuasiva, a partir dos quais o diálogo decorre” 8.

8 FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Teoria da Norma Jurídica. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2003. pág. 47.
A POSTURA INTERPRETATIVA CONCRETISTA QUE COADUNADA AO TEXTO CONSTITUCIONAL, À LEI E AO FATO SOCIAL
Assim, a necessidade de se adotar uma postura interpretativa concretista que coadune texto constitucional, subsistemas de saberes sociais e realidade social decorre do fato da fragmentação da sociedade em sistemas parciais autônomos, os quais conduzem os seus respectivos discursos e que têm que arranjar-se com construções próprias da realidade, incompatíveis entre si.

Destarte, o direito, a medicina, a agronomia etc., como sistemas parciais autônomos, interpretam diferentemente uma mesma realidade (por exemplo, a ciência da Homeopatia), atribuindo a uma mesma realidade conotações diversas. Todavia, esses sistemas parciais autônomos (direito, medicina e agronomia, por exemplo) utilizam um medium comunicacional geral para formular seus discursos explicadores de uma determinada realidade, permitindo, desta forma, que tais sistemas parciais entrem em contato uns com outros, influenciando a formulação de cada um dos discursos parciais.

Desta maneira, a linguagem, que circula em todos os sistemas parciais autônomos, permite o engate comunicativo de todos os sistemas parciais com a realidade, possibilitando que os códigos especializados de cada subsistema (do direito, medicina, agronomia etc.) opere funcionalmente na realidade social. Afirma Habermas que “a linguagem coloquial, gramaticalmente complexa e estruturada reflexivamente, possui, do mesmo modo que a mão, que constitui um monopólio antropológico, a vantagem da multifuncionalidade. Com sua capacidade de interpretação praticamente ilimitada e com seu modo de circulação, é superior aos códigos especiais pelo fato de formar um campo de ressonância para os ônus externos dos sistemas parciais diferenciados, permanecendo, deste modo, sensível aos problemas da sociedade global” 9.

9 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade, volume I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. pág. 81.

Especificamente em relação ao direito, observa o jusfilósofo Jürgen Habermas que “todo o ato jurídico é, uno actu, um evento da comunicação social geral. O mesmo evento comunicativo está engatado em dois discursos sociais distintos, ou seja, no discurso jurídico especializado, institucionalizado, e numa comunicação geral difusa. A interferência do direito com outros discursos sociais não significa que estes se diluam num superdiscurso multidimensional e também não significa que haja uma ‘troca’ de informações entre eles. Pois, em cada discurso, a informação é constituída de modo novo, e a interferência não acrescenta ao todo nada além da simultaneidade de dois eventos comunicativos” 10.

10 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade, volume I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. pág. 79.
Exemplo da função de interligação dos sistemas parciais realizada pela linguagem é um contrato de arrendamento, pelo qual o ato jurídico cruza-se com uma transação econômica e com fenômenos da realidade social dos participantes.
TEORIA DO DIREITO POSITIVO PARA SE DETERMINAR SE A CIÊNCIA DA HOMEOPATIA É UMA PRÁTICA EXCLUSIVA MÉDICA
No caso em questão, deve-se, utilizando o direito positivo como uma espécie de rede geral de comunicação socialmente integradora dos diversos sistemas parciais, analisar os discursos disciplinadores do saber médico e demais saberes sociais a fim de determinar se a ciência da Homeopatia é uma prática exclusiva médica.

Conforme demonstrado no presente PAC, a Homeopatia é campo de ação de inúmeras áreas do conhecimento humano, dentre as quais a veterinária, odontologia, farmácia, agronomia, zootecnia, biologia, psicologia etc., pois se trata de um sistema de saber que visa estudar o modo de ser de todos os sistemas vivos, podendo seus conhecimentos ser usados tanto no objetivo de prevenção e cura de algumas patologias humanas (ciência médica) quanto no objetivo de aplicar seus conhecimentos aos demais seres vivos (biologia), no fomento da atividade agrária (agronomia) etc.

Tanto isso é verdade que, aplicando seu discurso cognitivo à agronomia, por exemplo, a Homeopatia visa gerar o alimento sem agrotóxico, beneficiando a saúde da humanidade, sendo tal prática reconhecida e recomendada pela Instrução Normativa n.° 7 do Ministério da Agricultura, publicada no Diário Oficial da União em 19/05/1999.
CONCLUSÃO DO PROCURADOR GERAL DA REPÚBLICA:

PRIMEIRA DECISÃO E CONCLUSÃO

A HOMEOPATIA NÃO É UMA PRÁTICA
EXCLUSIVA DOS MÉDICOS

Portanto, tendo em vista os ensinamentos do mestre Friedrich Müller, a Homeopatia não faz parte da área da norma subjacente ao programa do preceito constitucional que estabelece a limitação ao exercício profissional da medicina, não procedendo a alegação do Conselho Federal de Medicina de que a Homeopatia é prática médica exclusiva.

SEGUNDA DECISÃO E CONCLUSÃO:

AS UNIVERSIDADES BRASILEIRAS SÃO AUTÔNOMAS PARA ENSINAR CONFORME O ARTIGO 207 DA CONSTITUIÇÃO BRASILIERA
Por fim, a alegação da Associação Médica Homeopática Brasileira de que o curso de extensão em Homeopatia ofertado pela Universidade Federal de Viçosa (UFV) apresenta irregularidades concernentes ao seu conteúdo, tais como o conteúdo programático do curso, a carga horária o assunto proposto etc. não podem ser objeto de atuação deste Parquet pois constitui área abrangida pela autonomia didática universitária, consagrada pelo art. 207 da Constituição da República.

Diante do exposto, determino o arquivamento do presente PAC, devendo ser procedidas as comunicações de estilo.

Belo Horizonte, 29 de janeiro de 2004.

FERNANDO DE ALMEIDA MARTINS
Procurador da República

Auxiliou na elaboração desta o estagiário Matheus de Mendonça Leite, desta procuradoria.

Para facilitar ao leitor , todos os títulos dos parágrafos, em caixa alta, foram formulados por José Alberto Moreno (Geógrafo homeopata, presidente da ATENEMG).

O texto é a íntegra da decisão do Procurador da República em Minas Gerais sobre o PAC, Processo de Ação Civil contra a Universidade Federal de Viçosa e a ATENEMG.

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